terça-feira, 18 de junho de 2013

O dedo na ferida




"Um proletário do Catujal compra um revólver e diz a um amigo que "ia haver mortes", referindo-se à sua mulher, que fora embora. Sete dias depois ele mata a mulher. Um jornal, que recolhe o testemunho do tal amigo, tem tempo e espaço para falar da depressão do assassino, mas esquece-se de perguntar à testemunha: "E que fez sobre a ameaça? Alertou a polícia?" Claro que o jornalista não perguntou, arriscava-se a ouvir: entre marido e mulher... Um médico que tinha sequestrado a mulher levou-me a tribunal, com esse argumento, por eu ter escrito uma reportagem sobre o seu abuso. Tive sorte, era juíza, e se calhar por ser juíza mandou-me embora, agradecendo. Isso aconteceu dez anos depois de Adélio ter matado Maria, quando ela voltou para casa depois de ter andado com outro. Julgado nas vésperas do 25 de Abril, o juiz-corregedor de Viseu sentenciou Adélio: "(...) Justifica-se a reação do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar." E deu-lhe só dois anos. Estava aquele jornal português sem pôr a pergunta devida ao amigo do assassino, um jornal inglês publicou fotografias de uma celebridade televisiva, Nigella, a ser agarrada pelo pescoço pelo multimilionário do marido, Charles. Foi num restaurante, em Mayfair, cheio de paparazzi. Daí as fotos. Mas um restaurante vazio de gente. Daí ninguém ter acudido. Ele há género humano e ela há género humano. Esta última, rica ou pobre, é como se fosse de segunda. Mas não é. Não é."

Ferreira Fernandes, Fechar os olhos a uma guerra civil

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