"Um proletário do
Catujal compra um revólver e diz a um amigo que "ia haver mortes",
referindo-se à sua mulher, que fora embora. Sete dias depois ele mata a
mulher. Um jornal, que recolhe o testemunho do tal amigo, tem tempo e
espaço para falar da depressão do assassino, mas esquece-se de perguntar
à testemunha: "E que fez sobre a ameaça? Alertou a polícia?" Claro que o
jornalista não perguntou, arriscava-se a ouvir: entre marido e
mulher... Um médico que tinha sequestrado a mulher levou-me a tribunal,
com esse argumento, por eu ter escrito uma reportagem sobre o seu abuso.
Tive sorte, era juíza, e se calhar por ser juíza mandou-me embora,
agradecendo. Isso aconteceu dez anos depois de Adélio ter matado Maria,
quando ela voltou para casa depois de ter andado com outro. Julgado nas
vésperas do 25 de Abril, o juiz-corregedor de Viseu sentenciou Adélio:
"(...) Justifica-se a reação do réu contra a mulher adúltera que
abandonou o lar." E deu-lhe só dois anos. Estava aquele jornal português
sem pôr a pergunta devida ao amigo do assassino, um jornal inglês
publicou fotografias de uma celebridade televisiva, Nigella, a ser
agarrada pelo pescoço pelo multimilionário do marido, Charles. Foi num
restaurante, em Mayfair, cheio de paparazzi. Daí as fotos. Mas um
restaurante vazio de gente. Daí ninguém ter acudido. Ele há género
humano e ela há género humano. Esta última, rica ou pobre, é como se
fosse de segunda. Mas não é. Não é."
Ferreira Fernandes, Fechar os olhos a uma guerra civil
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