terça-feira, 30 de novembro de 2010

O dia da humilhação



Não me gabo do meu português, nem escrito nem falado, e tenho pena que ele seja tão medíocre. Sou do tempo em que se faziam cópias e ditados na instrução primária. Nesses velhos tempos em que as teorias pedagógicas da modernidade ainda não faziam escola no nosso ensino, eram comuns os castigos corporais, vulgo reguadas. Por cada erro no ditado éramos chamados à vez à professora e já sabíamos, estendíamos a mão palma para cima, e aguentava-se à espera das reguadas fatais. Traz, traz!

Um dia, penso que terá sido entre a segunda e a terceira classe, fiz um ditado de tal maneira mau que tinha para cima de uma dúzia de erros. Olhei alarmada para o resultado, vexada e derrotada, enquanto aguardava que a senhora professora me chamasse para o castigo da praxe. Quando chegou a minha vez ela olhou para mim e disse: - com uma prova vergonhosa como esse ditado nem reguadas mereces -. E para minha miséria, não me bateu.

Sabe-se lá que traumas terei à conta disso, mas é verdade que sinto sempre alguma insegurança nestes terrenos da escrita, por isso longe de mim apontar o dedo seja a quem for. Mas arregalam-se-me os olhos cada vez que vejo escrito, cada vez com mais frequência, comer-mos, lavar-mos…(and so on), por aí adiante .
Ai tanta reguada a fazer falta por aí….

À espreita do Inverno...

A Neve

A Neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"Frankenstein is in the room"


 "A seita reduziu a política a uma impotência colectiva. A seita é inimputável. A seita tem no topo génios da matemática e das melhores universidades e business schools, apoiados numa industria de lobbying que faz com que existam cinco lobbyist pagos para cada membro do Congressos americano. A seita sabe que ninguém sabe de que é que eles falam, o que lhes permite continuar a fazer aquilo que fazem sem regra nem escrutínio. E com bonificações totalmente desproporcionadas. A seita sabe que especular, apostar contra a perda e a economia, pode fazer enriquecer. A seita não quer saber das fábricas fechadas, dos desempregados, dos contribuintes, dos sem-abrigo. Para melhor se defender, a seita nomeou os seus salvadores e sacerdotes e um homem inteligente como Obama nomeou para resgatar a economia americana alguns dos responsáveis pela falência e a dívida americanas. No mundo financeiro há muitos críticos da seita. Alguns, como Nouriel Roubini, previram a catástrofe"

Clara Ferreira Alves,  sobre o filme "A verdade da Crise" "Inside Job", Revista Única

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Exercício Espíritual

"Naniora" 1960

É Preciso dizer Rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Césariny
(9 Agosto 1923 - 26 Novembro 2006)

Inside job



Não percam o filme. E preparem-se para sair de lá com cara de otário. Eu até dormi mal.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Misérias


Agora são as idosas com mais de 60 anos. Mais uma face oculta das nossas misérias.

Português técnico



Já não suporto ouvir falar de alavancagem,  desalavancagem, agências de rating, resgate, mercados, dívida soberana, e outros quejandos que agora não me ocorrem.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pois...o balanço

 

A disparidade de números, não é novidade.

Vivo e trabalho em Oeiras. Não sendo funcionária pública nem trabalhando no sector empresarial do Estado, o dia decorreu com toda a normalidade. Passei pelo centro comercial. Tudo funcionava comme d'habitude, o hipermercado abarrotava com os funcionários públicos que fizeram greve, e as lojas conheciam a animação  da época natalícia. Dei uma volta pela vila, Tagus Park e Lagoas Park. A vida corria na sua mansidão habitual.

Admitir esta  realidade sombria é doloroso. As duas centrais sindicais não vão além da tradicional mobilização dos  funcionários públicos, em particular os professores que aderiram em massa, transportes e serviços de saúde. O difícil seria não serem mobilizados, numa altura em que sofrem um ataque brutal às suas condições de vida. Posto isto pergunta-se, e o resto do país?
Estamos mal.

Data


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

Hoje

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Amanhã





Martha Telles

 
Le Cadeau, Martha Telles, 1980, Col. Centro de Arte Moderna da F.C. Gulbenkian

"A filha de Martha nasceu aí,[Santa Marta de Penaguião] e ela tinha dezasseis anos. Os partos eram caseiros nesse tempo, e um médico bisonho e leal segurava a mão da mãe em perspectiva, dando-lhe alento sem deixar que ela abusasse dos mimos; porque o parto queria-se austero e não caprichoso."

"Nada é mais humilhante do que ter de pagar demais por falta de suficiente."

Agustina Bessa Luís, in Martha Telles - O castelo onde irás e não voltarás

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sem título


"O meu pai tinha sido ferido e torturado e pediu-me para fazer as malas antes de partirmos. como se faz a mala de um homem quando se é uma rapariguinha de 15 anos? O que é que se põe lá dentro? (Pausa) Sabe o que levei na minha mala? O meu tesouro. A camisa de noite de núpcias que a minha mãe tinha comprado para o meu casamento e de que eu não me queria separar. Parti para Auschwitz com uma camisa de núpcias, magnifica, em cetim branco."

Todos os dias tinha um pânico tão grande de ir para as câmaras de gás! E todos os dias a chaminés ardiam. Quando chegámos, perguntávamos às mulheres que lá estavam há mais tempo: "Onde estão as outras?" Elas apontavam para as chamas e diziam "Partiram ao comando do céu" Demorei algum tempo a perceber".

"Fui recebida no cais por um tio, também ele tinha estado em Birkenau, e a primeira coisa que disse foi: "Não lhes contes nada. Eles não percebem nada do que se passou".

"Nunca quis ter filhos. Durante anos não suportava bebés. Vi demasiadas crianças morrer".

Excertos da entrevista de Marceline Loridan-Ivens, sobrevivente de Auschwitz, cineasta, à Revista Única

sábado, 20 de novembro de 2010

Segurem-me....


Pablo Picasso, o louco (1904) Museu Picasso, Barcelona

"O recurso da procuradora do Ministério Público de Amarante custou aos bolsos dos  contribuintes mais de quatro mil euros, em encargos administrativos, salários de quatro magistrados e de uma advogada oficiosa. Em causa estava um casaco "em estado de infecta desagregação, roubado por toxicodependente ao irmão mais velho
hoje no Expresso...

Porque hoje é sábado



Para iniciar o fim de de semana...fiquem bem.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Primeira plateia (27)




Revisitando Kubrick e o seu  Dr. Strangelove. Uma boa proposta para este serão.

O Grito


Há uns dias li esta esta notícia, segundo a qual mais de vinte por cento dos portugueses sofrem, ou já terão sofrido, de perturbações mentais. A notícia só é novidade para quem não tinha reparado nesta de Março deste ano.  Pergunto eu, mas onde está o espanto? Como é possivel não enlouquecer quando,  dia sim, dia sim,  somos confrontados com notícias destas?

O Jardim




Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um
murmúrio de omissões, um cântico do ócio.

Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"


Socorro-me deste belo poema para prestar homenagear o Jardim Botânico que completa  132 anos.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Prémio Dardos (3)


«O Prêmio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras, e as suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.»

Agradeço muito sensibilizada ao T. Mike  por ter lançado um dardo a este blogue. Já está ali assinalado na barra lateral junto ao selo, que mimos destes não podemos deixar passar em branco.

De pequenino se torce o pepino

Uma vergonha.

Da virilidade verbal...


Portanto, a partir de agora já podemos todos gritar em coro como a Ivete Sangalo, e dar largas à nossa frustração diária com os colegas lambe-botas, chefes incompetentes e toda a corja mafiosa que infesta o nosso dia-a-dia. Mandêmo-los todos em bom português e em estereofonia pró c....que é uma alegria.

P.S. faltou-me acrescentar ao rol dos que me apetece de bom grado mandar pró c..., os mentecaptos sem remissão deste jaez.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Redundâncias


"Durão Barroso diz que a UE não está a pressionar a Irlanda".

Ah bom, assim já podemos dormir todos mais descansados.

Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tantas maneiras de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.


Mário Cesariny,  nobilíssima visão

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Tirem-me daqui...

Estas noticias, aqui e aqui são para o comum dos mortais como eu, quase incompreensíveis. Estamos sempre a levar pancada, quer chova quer faça sol. Entretanto o porta-voz  da Merkel faz avisos à navegação...

José Saramago

"Não consigo temer a morte."

José Saramago completaria hoje 88 anos.
Têm estado a decorrer durante este mês de Novembro uma série de iniciativas com vista a perpetuar a memória do nosso Nobel. Hoje, será inaugurada na Biblioteca Municipal Palácio Galveias a sala José Saramago. À noite, no cinema São Jorge será exibido o documentário “José e Pilar”, que  a 18 de Novembro chega às salas nacionais.

Mas a maior homenagem que lhe poderemos fazer é ler e reler os seus livros.
Descobri este bonito trabalho da TV Globo. Está aqui o essencial do seu pensamento.





segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Saíde, o Lata de Água"

"Tarde de madeira e zinco. Com telhados pendurados, a cacimba a raspar-lhe. Molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos.
No bairro de caniço a paisagem é beijada só pela morte. Saíde regressa a casa, tropeçando pragas. É rasteirado pela cerveja. toda a tarde entornada no seu desespero.
- Amigos? Caraças, são os primeiros a lixarem um gajo!
Estoiram risos nos umbrais das portas.
- Riam, cabrões.
Remexe os bolsos. Cigarros: nada. Fósforos: nada. As mãos impacientes interrogam o vestuário. Apetecia-lhe o fumo, precisava da força de um cigarro, da segurança dos gestos já feitos.
- Olha o Lata de água. A mulher nem sai de casa, desde que ele meteu-se na bebida.
Não era verdade. As mulheres sempre recebiam o prémio de se ter pena delas. Sacanas dos vizinhos. Só estão perto quando querem espreitar desgraças. No resto ninguém lhes conhece.
Entrou em casa e fechou a porta. A mão ficou no trinco, distraída, enquanto ele passeava os olhos naquele vazio. Lembrou-se dos tempos em que a encontrou: foram bonitos os dias de Júlia Timane!
Tinha havido muito tempo. Está sentado numa paragem à espera de nada, dessa maneira que só os bêbados esperam. Ela chegou e sentou-se ao lado. A capulana que trazia sobre os ombros parecia pouca para um frio tão comprido. Começaram de falar.
- Sou Júlia, natural de Macia.
- Não tens marido?
- Já tive. Por enquanto não tenho.
- Foram quantos os maridos?
- Muitos. Tenho filhos, também.
- Onde estão esses filhos?
- Não estão comigo. Os pais levaram.
Ele ofereceu o casaco para a cobrir de frio. Ala ajudou-o a encontrar o caminho para casa. Mas acabou por ficar aquela noite. E as outras noites também.
Quando souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. Ele não quis ouvir. Foi então que passaram a chamá-lo de Lata de água. Em toda a parte a alcunha substituiu o nome. A água aceita a forma de qualquer coisa, não tem a própria personalidade.
Com o tempo foi-se apercebendo de uma coisa grave: ela não lhe dava filhos. Isto ninguém podia saber. Um homem pode ter barba, não-barba. Agora filhos tem que tirar: é um documento exigido pelos respeitos.
Um dia disse-lhe:
 - Temos que ter um filho.
 - Não podemos, você sabe.
 - Temos que arranjar maneira.
 - Maneira , como? Se eu não tenho a culpa? O hospital explicou o problema: é você que não tira os filhos.
 -Não estou a falar de culpa. Já estudei o problema, a solução já descobri: abastece-se lá fora, mulher.
 - Não estou a perceber.
 - Estou-te a dizer: dorme com outro. Eu não vou zangar. Só quero um filho, mais nada.

À noite ela saíu. Voltou muito tarde. As noites seguintes ela fez o mesmo. Foram muitas noites.
Ele perguntou:
 - Uma vez não chega?
 - Não quer um filhos? é bom garantir.
 - Faça lá maneira que vocês sabem. Mas rápido, não quero falta de respeito.

Júlia engravidou-se. Ele festejou a notícia. Aquelas primeiras semanas foram muito felizes. Até que uma vez ela acordou-a no meio da noite:
 - Júlia, quero saber: quem é o dono da grávida?
 - Armando, você jurou que nunca havia de perguntar.
 - Agora já quero esse nome. Não podes dar parto sem eu saber a verdade do pai dessa criança.
Júlia permaneceu calada e arrumou-se outra vez na cama. Ele sacudiu-a com violência.
  - Vais dar-me porrada? assustou-se ela.
  - Quando não disseres, vou-te dar.
  - Não serei eu sozinha a batida. É capaz que vais aleijar o teu filho.
Ele olhou para si mesmo: estava de joelhos, parecia estar de rezas. Um homem que exige não fica na posição dos que pedem. Levantou-se e foi acender o xiphefo. Na sombra falou-lhe, já calmo:
 - Dorme Júlia, eu não quero ouvir esse nome. Mesmo quando te pedir outra vez: nunca fales essa pessoa.
Ela sorriu, destapou o lençol e mostrou aquele redondo da lua na barriga.
- É seu filho, Saíde. É seu.
A criança nasceu. Ele confirmou, então, a suspeita de um sentimento: o miúdo era um estranho, um remendo na sua honra. Mas um remendo vivo, chorosa testemunha das suas fraquezas. Às vezes gostava-o e ele era seu. Outras, o bébé era um intruso que o vencia.
Na vizinhança ningém desconfiava da identidade do pai. Mas Saíde estava cada vez mais inseguro: olhava a criança e parecia que ela sabia de tudo. Quis um filho para esconder vergonha. Agora, tinha um filho que ameaçava o segredo da sua vida. Cada vez era mais difícil aquela morada. Ciumava dos cuidados que a mulher dedicava ao pequeno rival. O futuro atrapalhava-o como um caminho escuro.Mais e mais vezes batia na mulher, cada vez mais passeava nas bebidas. Nunca bateu no miúdo. As porradas que lhe queria dar destinava-as na mulher.

Sentiu a força do vento na porta e acordou da lembrança. Sempre que se recordava trabalhavam facas dentro da alma. Estava proibido de ir ao passado. E tudo por causa de Júlia, raio de mulher. Fechou a porta coma decisão da fúria.
- Sua puta !
E desatou aos pontapés. Queria feri-la, transferir para ela as dores que sentia. Caíram latas, num barulho enorme. Ele não esmoreceu: debruçado sobre a cama insultava-a, cuspia-lhe, ameaçava-a da morte derradeira. Os vizinhos, ele já sabia, não viriam acudir. E, aquela noite, a raiva era demais. Havia de lhe bater até sangrar. Puxou do cinto e usou-o com tanta vontade que o balanço o fez cair sobre a mesa. Pratos e copos caíram, rasgando outra vez o silêncio da noite.
De repente, sentiu um barulho na porta. Quando olhou esse alguém já tinha entrado.
Era Severino, o chefe do quarteirão.
- Que queres, Severino?
- Calma, Saíde. Para quê tudo isso?
Ele respirava como se alimentasse muitas almas.
- Senta-te, Saíde.
Ele obedeceu.  Nos suspiros cicatrizava o fogo da alma.
- Porque você faz sempre isto? Já viu bater assim numa mulher?
Ele não respondeu. Tentava baixar aquela quentura dentro do peito. Ficou assim uns minutos, até que respondeu:
- Eu não estou a bater em ninguém.
Severino não percebeu. Deve ser está grosso, vai começar uma conversa de muitas coisas. Mas Saíde insistiu.
- Não há ninguém nesta casa. Só sou eu sózinho.
Severino olhou em volta, desconfiado. Não havia, realmente, ninguém.
- Pode ver em todo o lado. A Júlia não está, há muito tempo que foi-se embora. Eu não estou a bater contra ninguém.
- Desculpa, Saíde. Pensei...
E como não encontrasse palavras decidiu-se a sair.
Andava de costas como se a surpresa fosse uma cobra ameaçando saltar-lhe.
- Severino?
- Sim, estou a ouvir.
- Eu faço isto não sei porquê. É para vocês pensarem que ela ainda está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que bato não é ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que ela não sai porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não...
Severino tinha pressa de sair.Saíde estava com os braços desmaiados, caídos ao lado do corpo. Parecia que a carne se mudara em madeira e que a desgraça havia esculpido nela. Severino saiu, fechando a porta com o cuidado que se guarda para o sono das crianças.
Lá fora uma multidão aguardava das notícias. O chefe do quarteirão, com um gesto vago, espalhou a sua voz:
- Já podem ir. A mamã Júlia está bem. Ela está a pedir que voltem para vossas casas, dormirem descansados.
Alguém prostetou:
- Mas Severino...Afinal, como é? Tanto barulho...
O chefe do quarteirão, com sorriso atrapalhado:
- Eh pá, você já sabe como são essas nossas mulheres."

Mia Couto, Vozes Anoitecidas, 2ª edição, pag. 51 a 57

domingo, 14 de novembro de 2010

Non sense ?



Timor-Leste disponível para comprar dívida portuguesa.

No meio desta história toda, o quê que eu não percebi?

Domingo



Porque tristezas não pagam botas e parece que vem por aí chuva, fiquem na boa companhia de Pat Metheny. Bom domingo.

Portugal é um jardim...

"Por estes dias, Sua Alteza Revoltada anda histérico com a iminência de perder um dos privilégios que lhe advêm do privilégio de fazer lei de excepção a favor dos madeirenses: vai deixar de poder acumular a totalidade do vencimento de presidente do governo regional com a totalidade da sua pensão de 4121 euros (cuja revelação pela imprensa o levou na altura a classificar os jornalistas como "bastardos, para não dizer filhos da puta". Esse privilégio, assim como o do direito a uma pensão vitalícia quando, enfim, cessar funções, aí pelo ano 2045, foram ambos banidos no início do Governo Sócrates, há cinco anos. Mas não na Madeira, onde sua Educada Alteza tratou de se excepcionar e aos seus.  Segundo anunciou, Sua Roubada Alteza vai então pôr em tribunal o que chama o Estado "ladrão"..."
....
"Porque é que não há Presidente da República, nem primeiro-ministro, nem líder do PSD que não se ajoelhe perante o dr. Jardim? Têm medo que ele declare a independência? Pois que declare!"

É por estas e por outras que sou fã do Miguel Sousa Tavares. Não fosse ele um fanático fêcêpista, e seriamos almas gémeas.

sábado, 13 de novembro de 2010

Botas


Estão pela hora da morte.... mas o mais irritante é aquela sensação de que a felicidade neste inverno dependente delas.



Em ritmo de fim de semana



Nina Simone canta o maior clássico de Burt Bacharach "the look of love". Ela até poderia cantar " atirei o pau ao gato", que sairia sempre algo de surpreendente.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Isto é que vai uma crise...



Rendeiro e Rendeiro, Lda.

Bico de Obra...


Eles, coitados,  continuam a queixar-se da falta de mão de obra....

"É verdade que existe um conjunto muito grande de micro e pequenas empresas em que os salários estão longe de 475 euros», denunciou a sindicalista, acrescentando que há empresários que preferem suportar multas do que pagar o devido aos seus trabalhadores."

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cada cavadela sua minhoca

"A Igreja defende adequadas medidas económicas e sociais para que a mulher encontre no lar e no trabalho a sua plena realização".

Tristezas

Quem ri por último ri melhor. E não me parece que ele se esteja a rir neste momento. É este tipo de gente que infelizmente temos todos os dias a entrar-nos pela casa dentro, mal ligamos a televisão.

Boas leituras



...
"Esta repugnância comichosa do legislador pelos números não é novidade. Em 1974 considerou que o direito de manifestação podia ser impedido a menos de cem metros de determinados edifícios o que tornaria praticamente impossíveis os protestos colectivos em qualquer município, a começar por Lisboa.
....
Mas eram tempos em que a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre não tinha qualquer importância, porque o simbólico sobrelevava as dimensões reais das existências e reduzia-as a nada. A direita tinha um pavor alucinado das manifestações de rua, antevia guilhotinas, tachankas e comboios blindados, mas o seu propósito, que não era propriamente a proibição completa do direito de manifestação nas cidades, excedeu de longe as expectativas. Imagino um  governante a chegar a casa, a dizer ao mordomo (publicamente apresentado como "um primo da província, coitado, que vive cá em casa"): "Andrade, passe-me aí um uísque velho com soda que tenho de comemorar uma coisa." E para a mulher, que acorria em roupão: "Imagine, Maria de Santa Clara, que conseguimos regulamentar o direito de manifestação, à semelhança do mundo civilizado. Não me felicita?" E, depois, "Olhe, o que é exactamente um metro?"
Mas essas épocas alucinadas passaram e não custaria a um ministro arranjar um rolo de fio (para isso é que há contínuos) e desenrolá-lo no jardim da mansão de São Bento, a partir dos degraus, até parar no primeiro muro. Aplicando-lhe depois um fita métrica, e medindo o fio, segmento a segmento, descobriria, após um olhar cauteloso em volta: "É pá, isto ia tudo raso e nem chegámos ao muro."
Eis uma das consequências da péssima educação que se ministra na Europa de hoje. Um metro, um palmo, quatro centímetros, é tudo a mesma coisa, como julgava aquele célebre criado do Eça, o Vitorino, a quem tanto dava um livro de Química, como uma peça de Teatro, "porque eram tudo coisas em letra redonda".

Mário de Carvalho, in "A Arte de Morrer Longe"

domingo, 7 de novembro de 2010

Hoje ao Serão...

Oremos



"Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima como poder, é, quase sempre, um perigo.
Oremos.
Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa."

Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

Prémios Dardos (2)

Das três regras do  Prémio Dardos, faltava-me cumprir a terceira, nomear 15 blogues:
 

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Prémio Dardos

O Rogério  na sua imensa bonomia e amizade, entendeu que este blog merecia ser nomeado para o Prémio Dardos. Muito obrigada pela sua simpatia.

"O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, e suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web"

Logo que me seja possível darei conta das minhas nomeações.

"Assim no Céu como na Terra"



Na Galeria Samora Barros, em Albufeira, está em exposição "Assim no Céu como na Terra", da pintora Isabel Botelho. Até 27 de Novembro.

Está lindo, Isabelinha.

Estou à espera


"só com uma mudança económica, criando riqueza e emprego" se resolvem os problemas do país. E não com "utopias e ilusões", disse o candidado Cavaco Silva

Nesta fauteuil futurista, vou esperar sentada que ele nos mostre o caminho dessa "mudança económica" tendo em conta estas notícias.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dá cá o meu...




As primeiras ameaças já se fazem sentir, o Mário Jorge está muito preocupado com os doentes. E ainda a procissão vai no adro...

Mesa dos Sonhos

  
Raoul Dufy, La grande bagneuse

Mesa dos Sonhos

Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Primeira Plateia (26)



Kurt Elling que faz hoje 43 anos,  comeu o pão que o diabo amassou no início da sua genial carreira.  Venceu o ano passado um Grammy Awards, na categoria de “Best Jazz Vocal Album”. 
Happy Birthday to you!

Idade das trevas

Sakineh

"Bernard-Henri Lévy trouxe a condenação internacional, até da Casa Branca.
O filósofo repetiu que este é um «crime abominável», que deve ser impedido nestas últimas horas que restam, e defendeu que Sakineh Ashtiani deve ser um exemplo para todas as mulheres oprimidas do mundo.
Se ela for executada, nenhum Chefe de Estado ou diplomata poderá olhar nos olhos de dirigentes do Irão, advertiu.
Bernard-Henri Lévy acrescentou que se a iraniana for executada é preciso começar uma segunda campanha para o rompimento das relações diplomáticas com o Irão e falou ainda num apartheid sexual no Irão."
aqui

PS: aparentemente aqueles bárbaros terão suspendido a execução.