""Pronto, um celacanto, e depois?" Eis uma significativa colher que redemoinha na chavena de café de Jacinta até mais o aquecer pelo atrito, dingue-lingue, e já está em brasa outra vez. "Não digas mais nada! Não te atrevas!" - Era Jacinta agora, de colher em riste, apontada ao meu sobrolho. Havia um inquietante resplendor de beleza naqueles olhos pretos, matadores, e na boca franzina em fúria. O instante valia bem um celacanto. Mais do que a ouvir, eu deliciava-me a olhar para ela. Nunca tinha apreciado, em melhores horas, estes tentadores momentos de cólera. E o celacanto, bem entendido, o que era?
Um peixe. Existe na terra há mais de setenta milhões de anos, mas nunca demos por isso. Surgiu primeiro aos observadores em forma de fóssil, sumido e trabalhoso. Considerou-se exinto, lá para as funduras dos antedilúvios primordiais. Até que um dia se descobriram celacantos vivíssimos da costa a serem pescados no Canal de Moçambique. Iguaizinhos aos fósseis, mas com mais energia. São desconformes, largos, pardos, feios e sofrivelmente comestíveis. Jacinta leu uma reportagem em qualquer lado e teimou que precisava de um celacanto para honrar a exposição. Questão de dias, achar contacto em Moçambique e negociar uma transferência do celacanto, em bojo de avião, num tanque especial com a inscrição "xarroco tropical". Foi um negócio caro e escuro. Ao que parece, o celacanto está planetáriamente protegido. Mas o patrocinador da expedição, um construtor civil ligado ao futebol, e com interesses em África, achou graça à ideia. E assim, o "xarroco tropical" desembarcou no aeroporto de Lisboa, marchou num contentor até à Escola Politécnica e foi despejado num aquário com todos os requisitos. Passou a ser celacanto outra vez.
- E estava de boa saúde, o bicho? - perguntei eu.
- É melhor vires ver! - respondeu Jacinta. Eu protestei. Não queria ver peixes doentes. Jacinta derribou mais o sobrolho.
- Anda daí."
Mário de Carvalho, excerto de O Celacanto, in O Homem do Turbante Verde
Excelente, bela noite, ao ler sobre o celacanto.
ResponderEliminarBom final!
Ele ficou bem, sim...
Beijos daqui do Brasil, Mery.
Gosto muito do Mário de Carvalho, mas não li esse livro. Aguçou-me o apetite!
ResponderEliminarE por falar nisso...o champagne já está na geleira. A Maloud teve de o enviar pelo correio, porque está com um problema no blogger, igual ao que eu tinha e que só consegui resolver quando mudei para o Chrome.
Obrigado pelas suas palavras, querida amiga.