A estupidez sistémica
Sejamos claros: o significado político da vitória de François Hollande não se encontra tanto nas ideias novas, ou inesperadas, de que ele seria portador, mas no facto de representar o triunfo de ideias conhecidas que, até aqui, tinham sido vencidas e marginalizadas pela ortodoxia ultraliberal.
Este triunfo comporta talvez comode resto é natural - muitos equívocos. Mas o que é um facto é que o seu impacto político se tornou óbvio em poucos dias, mostrando bem que não tinham razão os conformistas cínicos que diziam que nada mudaria com esta eleição.
Como também não a têm os que se entregam a arrebatamentos demagógicos, como se tudo tivesse mudado de um dia para o outro.
Para já, lancetou-se o abcesso político Merkozy. E os alemães também estão a dar uma piedosa ajuda, com a série de derrotas que estão a infligir à chanceler Merkel nas eleições regionais. Mas é bom ter a noção de que ela se reserva para as eleições nacionais do próximo ano, e que a esse nível está tudo em aberto. E o brutal agudizar da crise grega não vai facilitar a vida a ninguém.
Entretanto, o tratado orçamental está arrumado, porque - para lá das cada vez maiores e decisivas reservas dos social-democratas alemães - nem a França nem a Itália o ratificarão. Com a derrota de Nicolas Sarkozy, Angela Merkel ficou sem aliados na Europa, o único apoio significativo com que agora conta é o da Finlândia.
A eleição de F. Hollande contribuiu para redistribuir as cartas do jogo político europeu, criando uma generalizada expectativa sobre o que o novo Presidente conseguirá fazer. As suas principais bandeiras são a reafetação dos recursos disponíveis dos fundos estruturais, a recapitalização do Banco Europeu de Investimento, a criação de project bonds e a taxação das transações financeiras. Estas bandeiras também não são novas, mas a nova relação de forças dá-lhes - sobretudo depois da deriva política dos últimos anos - outra força e credibilidade.
Com exceção da Alemanha, caminha-se assim para um consenso europeu sobre a necessidade de mudar de método e de estratégia na União Europeia. E a Alemanha acabará, a meu ver, por preferir o compromisso ao isolamento.
O processo de "saída da crise" será, todavia, longo e difícil - e ninguém sabe se ainda se irá a tempo de evitar o pior. Sobretudo porque a Europa, depois de durante séculos ter identificado a mudança com o progresso e com a melhoria geral das suas condições de vida, está agora paralisada com medo dela, olhando-a como a origem de todos os males e de todas as ameaças.
Mas não vale a pena continuar a fingir - como tantos políticos fazem - que não sabemos que aquilo com que hoje lidamos é com o fim de "um" mundo, o mundo que construímos nas últimas décadas, mais ou menos a partir da II Guerra Mundial. Depois dos sonhos dominados pela miragem do ilimitado na energia, no consumo e no crédito, descobrimos subitamente o imperativo dos limites.
E é nisso que estamos. O problema é que, com a crise dos subprimes e depois com a crise do euro, a descoberta dos limites foi também a descoberta de uma economia que se baseava na siderante incúria de uma indústria financeira apoiada nas mais sofisticadas tecnologias, que instauraram o que inspiradamente Bernard Stiegler designou como a "estupidez sistémica" do nosso tempo.
Estupidez que nasce do cruzamento do domínio tecnológico com a captura e a manipulação da atenção humana, nomeadamente através de um tão subtil como eficaz neuromarketing que promove um consumismo desenfreado, viabilizado pela incapacitação cada vez mais generalizada dos cidadãos.
Promovendo, por um lado, a destruição de todos os saberes e, por outro lado, a diluição de todas as responsabilidades.
E isto que explica o desatino político em que hoje se vive, bem como a ruína das evidências que nos cerca. Ruína das palavras, dos gestos e das ideias, que se tomaram vazias, previsíveis e inconsequentes, gerando uma atmosfera de crescente revolta, mas também de inegável impotência.
O que é preciso compreender é que estA estupidez sistémica foi - e continua a ser - criada pela progressiva perda das nossas capacidades, dos imensos saber-fazer e saber-viver das pessoas e das comunidades, cada vez mais sujeitas a uma socialização intensiva de tecnologias que apenas visam lucros fáceis.
Lucros que perderam qualquer perspetiva do investimento e qualquer sentido de médio/longo prazo, para se tomarem "naturalmente" especulativos, isto é, incapazes de se transformar em crédito útil para as economias, criando assim uma insolvabilidade cada vez mais estrutural.
A recente revelação do "buraco" de dois mil milhões de dólares pela J. P. Morgan veio mostrar que, por mais pesadas que sejam as lições da crise, a especulação financeira não desiste de continuar a intoxicar o mundo dos seus produtos derivados, persistindo na senda do ilimitado.
Por tudo isto, a mudança - se vier de facto a ocorrer - não se vai ficar a dever a nenhuma palavra mágica, ao contrário do que as recentes litanias em torno da palavra "crescimento" parecem insinuar. Mas há talvez uma outra palavra que pode sintetizar a mudança que hoje se impõe e todos procuramos: é a palavra transição.
Uma transição que corte com A estupidez sistémica e aposte num mundo viável. Uma transição que seja simultaneamente, financeira e económica, energética e ecológica, cultura e educacional, social e geracional.
Mas para isso precisamos de políticos que sejam, também eles, de transição: de políticos com outra lucidez, que não estejam cativos, nem do statu quo nem da da indignação declamatória. Era bom que fosse esse o caso de François Hollande!