(....)
Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta, e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio, atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo, virou costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, (...)
Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada, fechou os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha, na rua passou um eléctrico, talvez o último, quem será que não quer dormir em mim, o corpo inquieto, de quem, ou o que não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro, ou esta parte de mim que cresce, meu Deus, as coisas que podem acontecer a um homem. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às escuras, guiando-se pela luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco da porta, depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam no seu tempo os cruzados, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os castelos, e as armaduras, depois, sem saber se ainda está acordado ou dorme já, pensa nos cintos de castidade de que os senhores cavaleiros levaram as chaves, pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio, fechada está, um vulto atravessa tenteando, pára à beira da cama, a mão de Ricardo Reis avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele cala-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento."
(O Ano da Morte de Ricardo Reis - trechos das paginas, 97, 98, 99 - 2ª edição autografada)
Ariel,
ResponderEliminarIa eu com uma ideia préconcebida de lhe isolar uma frase, um parágrafo uma qualquer parte do texto para depois lhe acrescentar dois ou três adjectivos bloguescos, mas desisti. Dei comigo a desejar transcrever todo o texto. Assim, fica-me um só qualificativo: SUBLIME
AQUI, ÀS SEGUNDAS ASSINO-ME
"Apóstolo Rogério"
Rogério,
ResponderEliminarObrigada meu amigo. Quando decidi colocar aqui esta trecho desta obra prima, pensei logo nesta passagem, que numa mais esqueci. Fui buscar o livro à estante, e ele abriu-se exactamente nesta parte. Há coisas assim, inexplicáveis.
Belíssima escolha, este extracto de O Ano da Morte de Ricardo Reis que, como diz, é uma obra prima!
ResponderEliminarConheci Saramago, pessoalmente. Tive o privilégio de com ele ter convivido. Acompanhei-o no inesquecível trajecto para escrever Viagem a Portugal. Possuo quase toda a sua obra, a maior parte dos livros, autografados.
Foi com imensa satisfação que a encontrei no grupo de apóstolos! Bem haja.
Abraço
Caro Carlos Albuquerque,
ResponderEliminarMuito obrigada pelo seu comentário. A obra de Saramago é felizmente vasta, mas esta passagem faz parte de um pequeno role de impressões fortes que nos ficam para o resto de vida.
Um abraço.