"Ao terceiro dia achou-se ridículo e não desceu, fez-se esquecido e desejou que o esquecessem. Era não conhecer Salvador. Na hora extrema bateram-lhe à porta, Lídia entrou com a bandeja, colocou-a sobre a mesa, dissera, Bons dias, senhor doutor, com naturalidade, é quase sempre assim, um homem rala-se, preocupa-se, teme o pior, julga que o mundo lhe vai pedir contas e prova real, e o mundo já lá vai adiante, a pensar noutros episódios.
(....)
Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta, e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio, atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo, virou costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, (...)
Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada, fechou os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha, na rua passou um eléctrico, talvez o último, quem será que não quer dormir em mim, o corpo inquieto, de quem, ou o que não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro, ou esta parte de mim que cresce, meu Deus, as coisas que podem acontecer a um homem. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às escuras, guiando-se pela luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco da porta, depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam no seu tempo os cruzados, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os castelos, e as armaduras, depois, sem saber se ainda está acordado ou dorme já, pensa nos cintos de castidade de que os senhores cavaleiros levaram as chaves, pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio, fechada está, um vulto atravessa tenteando, pára à beira da cama, a mão de Ricardo Reis avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele cala-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento."
(O Ano da Morte de Ricardo Reis - trechos das paginas, 97, 98, 99 - 2ª edição autografada)