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"Esta repugnância comichosa do legislador pelos números não é novidade. Em 1974 considerou que o direito de manifestação podia ser impedido a menos de cem metros de determinados edifícios o que tornaria praticamente impossíveis os protestos colectivos em qualquer município, a começar por Lisboa.
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Mas eram tempos em que a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre não tinha qualquer importância, porque o simbólico sobrelevava as dimensões reais das existências e reduzia-as a nada. A direita tinha um pavor alucinado das manifestações de rua, antevia guilhotinas, tachankas e comboios blindados, mas o seu propósito, que não era propriamente a proibição completa do direito de manifestação nas cidades, excedeu de longe as expectativas. Imagino um governante a chegar a casa, a dizer ao mordomo (publicamente apresentado como "um primo da província, coitado, que vive cá em casa"): "Andrade, passe-me aí um uísque velho com soda que tenho de comemorar uma coisa." E para a mulher, que acorria em roupão: "Imagine, Maria de Santa Clara, que conseguimos regulamentar o direito de manifestação, à semelhança do mundo civilizado. Não me felicita?" E, depois, "Olhe, o que é exactamente um metro?"
Mas essas épocas alucinadas passaram e não custaria a um ministro arranjar um rolo de fio (para isso é que há contínuos) e desenrolá-lo no jardim da mansão de São Bento, a partir dos degraus, até parar no primeiro muro. Aplicando-lhe depois um fita métrica, e medindo o fio, segmento a segmento, descobriria, após um olhar cauteloso em volta: "É pá, isto ia tudo raso e nem chegámos ao muro."
Eis uma das consequências da péssima educação que se ministra na Europa de hoje. Um metro, um palmo, quatro centímetros, é tudo a mesma coisa, como julgava aquele célebre criado do Eça, o Vitorino, a quem tanto dava um livro de Química, como uma peça de Teatro, "porque eram tudo coisas em letra redonda".
Mário de Carvalho, in "A Arte de Morrer Longe"
Um texto
ResponderEliminara jeito
escrito
bem a preceito...
Também aprecio Mário de Carvalho.
ResponderEliminarBoa semana
Um grande escritor Rogério, que recomendo vivamente.
ResponderEliminarSão
ResponderEliminarDesde "Casos do Beco das Sardinheiras" que me tornei fã.
Boa semana também para si.