segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Boas leituras



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"Esta repugnância comichosa do legislador pelos números não é novidade. Em 1974 considerou que o direito de manifestação podia ser impedido a menos de cem metros de determinados edifícios o que tornaria praticamente impossíveis os protestos colectivos em qualquer município, a começar por Lisboa.
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Mas eram tempos em que a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre não tinha qualquer importância, porque o simbólico sobrelevava as dimensões reais das existências e reduzia-as a nada. A direita tinha um pavor alucinado das manifestações de rua, antevia guilhotinas, tachankas e comboios blindados, mas o seu propósito, que não era propriamente a proibição completa do direito de manifestação nas cidades, excedeu de longe as expectativas. Imagino um  governante a chegar a casa, a dizer ao mordomo (publicamente apresentado como "um primo da província, coitado, que vive cá em casa"): "Andrade, passe-me aí um uísque velho com soda que tenho de comemorar uma coisa." E para a mulher, que acorria em roupão: "Imagine, Maria de Santa Clara, que conseguimos regulamentar o direito de manifestação, à semelhança do mundo civilizado. Não me felicita?" E, depois, "Olhe, o que é exactamente um metro?"
Mas essas épocas alucinadas passaram e não custaria a um ministro arranjar um rolo de fio (para isso é que há contínuos) e desenrolá-lo no jardim da mansão de São Bento, a partir dos degraus, até parar no primeiro muro. Aplicando-lhe depois um fita métrica, e medindo o fio, segmento a segmento, descobriria, após um olhar cauteloso em volta: "É pá, isto ia tudo raso e nem chegámos ao muro."
Eis uma das consequências da péssima educação que se ministra na Europa de hoje. Um metro, um palmo, quatro centímetros, é tudo a mesma coisa, como julgava aquele célebre criado do Eça, o Vitorino, a quem tanto dava um livro de Química, como uma peça de Teatro, "porque eram tudo coisas em letra redonda".

Mário de Carvalho, in "A Arte de Morrer Longe"

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